'Carne Osso' expõe as condições precárias de trabalho em abatedouros e frigoríficos do Brasil
Cerca de 750.000 trabalhadores do setor estão expostos a riscos físicos e psicológicos três vezes maiores que a média de outras categorias de trabalho
Rodrigo Levino
As condições precárias alimentam uma cadeia de prejuízos para o trabalhador, o estado e o contribuinte.
Documentário é um gênero rico, entre outras coisas, pela liberdade temática, a possibilidade de abordar um assunto sem a obrigação de encaixá-lo na expectativa do grande público, como ocorre na indústria do cinema. Isso pode não o tornar mais nobre, mas o aproxima algumas vezes da utilidade pública e o faz relevante.
Um exemplo desse viés é Carne Osso, dirigido por Caio Cavechini e Caio Juliano Barros, um dos destaques do 16º Festival É Tudo Verdade. O filme destrincha as condições de trabalho em alguns abatedouros e frigoríficos brasileiros, um tema pouco explorado e de raro interesse.
Em 2010, o Brasil se manteve líder de exportação de carne bovina no mundo com 1,7 milhão de toneladas vendido para mais de cinquenta países. O lucro obtido na venda de aves e carne suína para a Europa e os Estados Unidos está na casa dos seis dígitos. Em resumo, é uma das principais forças da economia nacional e vedete da balança comercial junto com as commodities agrícolas. As boas condições do mercado, no entanto, nem sempre se equiparam às de trabalho nos abatedouros.
Segundo dados da Previdência Social apresentados por Carne Osso, cerca de 750.000 pessoas trabalham no setor expostas a riscos três vezes maiores que a média registrada em outras categorias. O alto índice está no manuseio de objetos perfuro-cortantes, nas lesões corporais por esforço repetitivo e nos danos psicológicos.
Para efeito de comparação, a medicina do trabalho considera 35 movimentos com a mão o número limite que um trabalhador pode desempenhar por minuto na sua atividade. Em um frigorífico de médio porte, a média é de 80 movimentos por minuto para a desossa de uma sobrecoxa de frango. O trabalho funciona como uma poupança de danos futuros.
As condições precárias alimentam uma cadeia de prejuízos para o trabalhador, o estado e o contribuinte. A demanda permanentemente ajustada para cima para atender aos compradores exige do trabalhador esforços que podem causar danos físicos e psicológicos a longo prazo. Inválido ou com a saúde precária, resta o desemprego ou o seguro-saúde, aumentando ainda mais o rombo da previdência no Brasil.
Para as empresas, pagar as multas aplicadas pelos fiscais do Ministério do Trabalho é menos oneroso do que readequar as estruturas dos frigoríficos. Em alguns casos, se paga em dia, a sanção tem abatimento de 50% do valor original. O panorama apresentado pelo documentário, que escapa de se prestar ao lobby vegetariano, é preocupante e comovente.
Cavechini e Juliano falham, no entanto, por inexperiência e excesso de partidarismo. A escolha – e repetição – de algumas imagens, o recorte limitado das realidades expostas, concentrado no Rio Grande do Sul e no Mato Grosso do Sul, e a não identificação das empresas devassadas comprometem o resultado do filme. Não menos do que a falta de contraditório, de justificativa dos frigoríficos ou enfrentamento com os dados e os depoimentos colhidos que certamente fortaleceriam a tese da dupla. Ainda assim, o filme cumpre um bom papel ao despertar uma discussão oportuna
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